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o sol é o maior pixador da cidade (2021)
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Essa tessitura pela qual me inscrevo aqui se dá pelo aspecto formal de uma colagem que justapõe os gêneros literários da crônica cotidiana, do microconto fantástico e da poesia amante no hipertexto do ensaio linguístico; costura de experiências de um nativo de mangue e assimilado urbano como contação de estórias (todas elas de verdade) no horizonte de nossa existência coletiva; existência vivida na seara caribenha dessa territorialidade que salta dois centímetros para fora do território brasileiro e quer morar em Trinidad y Tobago ou em Martinica, como se essas duas ilhas fossem parte da foz do Rio Siará, mas aqui é céu-ORUBÁ, aqui dentro aqui, não distante, dentro, imperioso crustáceo, pitu de nossas terras, faróis em terra Anacé e Tapeba.

A alvorada de vivências de cinco anos depois de fazer êxodo rural de Sobral, interior do Siará, e voltar a morar em Fortaleza, torna esse ensaio um pulso vital sob encruzilhadas por uma cidade maresial-solar, para além de estórias de dinheiro, sexo, drogas e violência de costa a costa. Sobre a jornada de ir e voltar do Centro para estudar artes cênicas no Teatro José de Alencar; sobre andar por avenidas de piste de mil olhos de concreto; sobre perder e se encontrar; sobre os cheiros de sol, sal, sangue, suor e semêm que fecunda a terra nas semeaduras que estamos a colher; sobre o pôr do sol mais lindo da América do Sul no farol do Marco Zero da Barra do Siará; sobre loucura e aquecimento; sobre os Reis da Incantaria siarense que me possibilitaram estes versos e me abençoaram com os saberes da palavra e do dengo; sobre a pixação como crime e o crime como expressão de modos de vida que nos negaram; sobre existência para além dos morticídios; sobre morrer e continuar vivo: seara de enseadas na cidade que têm boca aberta pro Caribe, mas vive de encruzilhadas étnicas de terra-mar. Nominações de uma cidade que nos enlouquece de canhões viradas para dentro de seu território. O perigo é nossa revolta.

A alvorada no centro de Fortaleza era aguçada pelas luzes de mercúrio. A pouca iluminação fazia dentes em cada boca de calçada. A praça da estação cuspia os corpos para fora da garganta das ruas  de acesso a uma outra praça: Praça José de Alencar. No caminho daquela rua, o bar da esquina recebia as passadas ao som de “Diário de Um Detendo” dos Racionais MC’s. Entrando no bar, um corpo preto vestindo apenas um short e sem camisa, boné cinza, de sapato e meia, dançava as batidas do flow com uma sacola- de-sei-lá-o-que nas costas. Os corpos remexiam a cabeça e eu passava também batendo a minha. No primeiro  cruzamento, um homem e uma mulher conversavam sentados sob um papelão que cobria o chão encardido: “(...) quiçó, quicó, a vida mulambou nossos pacote e dei  vário pinote em busca do bruto lá.  Escavuquei  a terra, não encontrei nada branco, não  vi a farofa de santo, nada pra Zambi, tão pouco pra Oxalá. Catacumba descalça  em perna ligeira, sem eira nem beira, coisas que não posso falar. Dei vários pinote, minha mente pensava que a puliça ia me dar bote naquele areal sem fim detrás das malocas na boca do mangue sem sorte, desovaro tanto ali que pensei que seria a próxima desova. Sem eira nem beira, catacumba descalça em perna ligeira, dancei mais um silva,  estrela num brilha, possa crer na instiga de mais um criolo parteiro das vida que nos negaro... dei de barriga aos montes e montes. Vim aqui pra caçar o Cruzeiro das Almas que nos negaro no enterro, quando nos assinaro indigente. Agora o congá... nos deu a festa pra seu Zé Pilintra das Almas. Aquele pretim que andou de sesmaria em sesmaria e cruzou Sibamba na força do Jucá. Adormeci 70 anos, mas diferente dele, não foi dentro do tronco da Jurema.  E você num vê, cumpadi vei, nosso ardor, nosso adormecimento... Pra sua epistimulugia num existo. Sou culpado pelas violência que vivi? Busco o bruto lá. É preciso intender meu bruto também, minha zanga-zanga, meu chichiado, saca de sessenta quilo nas costas pra alimentar os pinto do patrão, cumadi veia, ô minha Iaiá.”

 

A alvorada no centro de Fortaleza era aguçada pelas luzes de mercúrio. A pouca iluminação fazia dentes em cada boca de calçada. Em cada boca de calçada, lixos. Ao passar por duas sacolas de lixo, um homem estava curvado abrindo o plástico fino e tateando uns fios de macarrão levando-os à boca.

Poucos metros à frente, numa banquinha, se assavam churrascos que esfumaçava de cheiro de carne à percepção olfativa da rua. O paradoxo da vida humana no mundo é substanciado por imagens da cidade maresial de costa a costa. A fome gritava, o suor gritava, os ventos gritavam, o enxame gritava, as encruzilhadas gritavam,  depois  das seis e meia da noite. “PORRAAAAAAAAAAAAAAAAAA!!!”

 

– o grito vinha atravessando 7 encruzilhadas desde a boca da Praça da Estação –, “Esqueceu quem sou? Esqueceu dos pinote, esqueceu dos pacote, ô fela da gaita?”  Ninguém mais viu a boca de tal berrante pois ninguém ousou olhar novamente para trás. A rua é uma senhora velha  que têm suas leis.  Um tanto de tirar nem pôr e um muito de ver e ficar quieto. Quase chegando no solo da antiga


Praça José de Alencar, havia sempre, sempre quando atravessávamos ali, os sinhô que ficavam vendendo ervas-de- todo-tipo. Saúdo um sinhorzim e pergunto: “têm ervas de banho, mô fi ?” E ele logo responde:  “têm  sim,  têm sim; pachuli, alecrim, eucalipto...” pergunto se ele tinha arruda ou lavanda, e ele responde que não, mas continua falando o nome de outras ervas. Peço patchouli, alecrim e eucalipto. Ele deixou tudo por cinco conto. Agradeci e segui meu rumo. 

é antes de tudo um lugar de muitos nomes, é antes de tudo um lugar que tem o nome de alguém que falou de uma mulher indígena num recorte individual  sem conexões com a fortitude dos lugares. Um romance indigenista não  ajuremado  fracassou no tempo. O estereótipo não fuma cachimbo porque não sabe bebê-lo.  A praça José de Alencar é antes de tudo um lugar de muitos nomes, poderia ter nomes que não sabemos, nomes invisíveis. Os pancadões de funk faziam as comadres tremerem o quadril; quatro delas de vestidinhos estampados em roda, conversando papos de mil ritos. Mais à frente, depois da feira em desmontagem, uma mulher falava de longe e com vigor a uma outra. A que falava,  andando  apressada,  ia em direção a uma árvore grande. De corpa flácida e forte, de boné branco virado para trás, short também branco com detalhes vermelho e azul da TUF (Torcida Uniformizada do Fortaleza) e blusa amarela, baixou o short e deu uma mijada, semiacocada, respondendo algumas indagações feitas a ela:“Oxi!  Num  te falei, num te falei... essa puta ia voltar, é mais forte que vara de Jucá!” E ela seguiu falando disso já levantando o short. Indo em direção ao Teatro José de Alencar, para o ensaio da minha primeira peça  cênica, visito o mundo como ele é... e aqui me ponho a ensaiar sobre a vida nesta cidade, para além dos traumas.

 

Foi já depois da hora do almoço, depois dos tumultos  de pratos  e colheres batendo, que os pios e voos rasantes se fizeram... e inda se fazem, tarde a dentro. Com olhos de pardal, sinto a vista se emaranhar aos fios dos postes ao andar pela cidade maresial. Nossa eletricidade talvez fervilhe por nosso sangue. Meu bairro cresce, meus ombros crescem. Não  tenho  mais corpo de culumim, mas inda tenho memória e inda também enxergo. Vidas- culumins são agora traços de mim, fios como os dos postes na tarde de meu corpo. A avó de um afeto já me falou que voamos juntos com pardais quando vemos seus voos. Já de saída do TJA, os pensamentos nos fluíam junto à orla. Depois de pedalar pequena distância, encontrei quem era de mim e entramos à porta de sua casa e o calor que nos seguia nos banhava de suor. Míseras escadas. Só a janela da tua casa nos aliviava. Em outros dias, o quadrado das tuas janelas poderia sufocar. Grades, cerca elétrica, rede de proteção e nosso corpo quase sempre às avessas. Cansar da janela e ser salvo por pardais na manhã  ensolarada:  essa  memória  brota.  Em frente  ao sofá  da sala,  outra memória: aurora, quantos dias mais rasgarão nossa pele? Luz sob as malocas, cotidiano: sagrado-profano.


É quinta de cinzas no país e minhas pernas estão doloridas. Avarandadas, as nuvens navegam nossa solidão. Os pardais. Os fios. A tonalidade cinza. A boca do mundo a mastigar os corpos das gentes. As antenas recebem e emitem sinais. Escutamos um culumim mimado chorar, mas os pardais são os que não estão em vão. Nossos pais estão longe, lá onde também existem pardais, na terra arrodeada por serras. Akwa tira uma foto enquanto a alvorada continua cinza. Em Sobral, a tarde de lá devia esperar seu fim. A quentura daquela cidade mexe os corpos e as corpas numa panela de sopa de suor. Na alvorada sobralense, os ventos descidos das serras aliviam quem já derretido esteja. Parece que a noite lá é sensível a quem sinta tanto calor. Uma caatinga de inteiros.

 

 

E já era mais um dia. Acordou, o Zé... levantou o ômi. Agora ele dava alguns passos até a pia do banheiro, lavando seu rosto enquanto seu rosto rasteja no espelho. Memória. O flash mental mostra a madrugada tumultuada que transtornou os ouvidos da negada. Helicópteros podem ser panópticos. Vigiam de cima. Marcam de cima. Punem de cima. Zé sente suas costas, sente suas pernas. Quando acontecimentos de uma realidade noturna são pesadelos barulhentos, nenhuma cama nos descansa. E Zé não havia descansado. Nas vielas partidas, o sangue escorria. Zé, com os pés tatuados de morte, cruelmente respira. Existindo mais um dia, vencendo morticídios, vencendo intrigas. O número de sua casa é 77. Zé pega sua bicicleta monarque e abre a aurora. Para quem fica em mais um dia e cuida da casa, o rio da vida que percorre o mangue continua a correr para o mar. “A felicidade é igualzinha à nossa maloca arrumada. Aquela fotografia de tudo no lugar pode ser uma imagem feliz. Mas a bagunça virá de novo. E a bagunça é sempre nova. Aprendemos mais arrumando nossa casa do que observando ela arrumada. Viver o processo. O zelo pouco nos ensina. Não dispenso a felicidade, mas admito que conservar a beleza das coisas tem seu preço. Ver uma xícara espatifando pedaços de vidro pelo chão me fascina, porém não quero derrubar sempre uma xícara, eu ficaria sem tomar café. É impossível tomar café usando a palma da mão, me queimaria toda e ficaria um bom tempo sem poder arrumar: não arrumaria o corpo de minha maloca, nem meu corpo, nem o corpo dos outros. Então, deixo para o acaso esse pequeno acidente. O despropósito: juntar cacos. Perfurados os pés com pedacinhos de vidros imperceptíveis.”

 

Estamos percorrendo tantas distâncias lendo e escrevendo essas palavras. Como você está se sentindo aí? Se precisar, dê uma pausa desse ensaio, arrume a bagagem, porque a viagem continuará. Os quilômetros são uma tentativa frustrada de unidade de medida universal. No horizonte dos continentes, os povos fazem suas medições. Por aqui, andamos desembestados e desembestadas por tantas léguas tiranas. Essas pedaladas invisíveis foram motoras de movimentos. Ao lembrar de pedaladas visíveis de itinerários já citados anteriormente, a Avenida Francisco Sá escorria o percurso de volta do TJA para o meu bairro. Na minha bicicleta monarque, nomeada de Falange nas cores preta e vermelha, rasgávamos noites ao cheiro de chiclete e de chorume misturados ao cheiro da queima de castanhas dessa avenida fabril... As pessoas nas paradas de ônibus olhavam

atentas a passagem das bicicletas. As carcaças dos ônibus corriam atrás de tragédias, mas nossos olhos fugiam delas. Os quilômetros são uma tentativa frustrada de unidade de medida universal. Na ida e na volta, há sempre uma parte de nosso corpo, quer dizer, há sempre uma parte de nossas percepções que, quando penetradas, ficam grafadas no ato de perceber: pixação. Pertencer a carne viva da rua, as memórias das avenidas. A arte contemporânea como entidade é sedentária porque ela não pixa, mas ela tenta encarcerar a pixação nos seus discursos de higiene, paredes alvas de museus.

Que nem quando Nefasto E.D.T. (Espíritos das Trevas) e Odiado G.R. (Geração Rebelde) rasgaram a faixada de pedra da Caixa Cultural de Fortaleza. E logo depois a instituição tentou, a todo custo, limpar essa “sujeira”. As paredes externas nos pertencem, o lado de fora do muro... internamente, vocês podem engaiolar as merdas de vocês. As unidades de medidas são frustradas; não mediram que os pés que pisam, caminham muito mais caminhos no sentido de dentro, de dentro de si para si. Os vinte e cinco quilômetros de ida e de volta do meu bairro para o centro dessa cidade são insuficientes para o quanto de percurso há nas voltas de tudo. Outro dia era domingo, nove horas da noite. Saio do TJA, o pneu de minha bicicleta fura ainda na altura da praça e ando uns dois, três quilômetros em busca de um borracheiro. Andei e andei e nada! Entrava em ruas à direita, entrava em ruas à esquerda e perguntava nas casas e nada! A Avenida Francisco Sá era sempre minha reta continua, mas nesse dia eu ziguezagueava sua linearidade.

Continuei, até que passou um homem preto vindo do trampo, uniforme de supermercado, cerca de um metro e sessenta de altura. Perguntei quando ele passou: "Ei fi, tu sabe se tem algum borrachero por aqui?" Ele diz que não e continuou a caminhar..., mas de repente ele parou e me chamou: "Ei, vizim a minha casa tem um cara que conserta... só num sei se ele tá em casa, mas vamo lá!" Era o bairro Carlito Pamplona, eu ainda estava longe de casa. Entramos à esquerda em uma rua. Tivemos conversa rápida e descobrimos que temos tias que moravam perto uma da outra e que são igualmente costureiras. Chegando em sua maloca, mas o borracheiro vizim dele não estava. Esperamos por uns quinze minutos até ele chegar. O nome do moço que eu tinha encontrado na Xico Sá era André e o nome do borrachero era Gilvan. A câmara de ar tinha furado em vários cantos e ia ser pedo ó (pedo de lara: gíria fortalezense para quando algo dá certo, o contrário de é sal, quando algo dá certo). Só que o Gilvan tinha uma câmara de ar parada lá e foi sal. Ele não me cobrou nada. No dia após esse, indo novamente para o Centrão Grande, vi Deus desfalecido, a carga pesada da cidade o desfaleceu. Tu não viu a carcaça estirada dele na esquina passada? Ele ao lado de sua bicicleta vermelha, com os braços abertos sob o chão e os olhos fechados para o céu, para o céu azul do meidia, na quentura do chão do meidia, da meia vida dos dias de fardo que desatam todo cansaço. Esquinas depois o medo invadiu meus olhos e olhei a cidade como a boca que me comerá.

De costa a costa, contamos estórias para além das substâncias de dinheiro, sexo, drogas e violência dos programas policiais. Poderia se passar cinquenta fevereiros sob a Barra do Siará. Quem fala e quem escuta e quem sente e quem aprende o bater do mar? Atlântico, endereço de casa, quintal aonde as costas dos meus 21 anos arderam. Nenhum calafrio. Aquele vetim de calção azul, escura pele molhada que corre em areia, ele sou eu. O impulso de ir. A energia de nossos corpos esteve a acender as luzes noturnas de mercúrio de nossa cidade solar. Nosso cansaço, a apagá-las. Caminhar corpo- cansaço na aurora. Os Trópicos Câncer, de Capricórnio e a Linha do Equador, atravessam os terrais imaginários de nossa geografia. Descanso, também escutamos teus sinais. Passos de atro- cidade: os espaços contínuos do território metropolitano é uma boca cheia de dentes de concreto. Quem, no fim, não será devorado? Maquinas não nos comem só meidia. O que maquinaria come são essas meias-vidas, desfalecendo em muitos lugares, indo para o lugar nenhum. Passos  de velo-cidade: como navios já naufragaram ao chegar no porto, corpas inconstantes naufragam ao pisar o chão de gélido concreto dos terminais de condução. A partida é chegada. A chegada é partida. Como se faz perguntas? Que paisagem nossos amores? Comportar as corpas ao seu lado, não sentir peso, conversar silêncio. Mais um carro passou. Mais um barulho se ouviu. O mar apontando norte, sul, leste e oeste na linha do horizonte maresial do Cosmograma Bakongo.

Estamos em agosto e sabemos dos ventos frios que nos esperam na areia da praia. Agosto continuará a atirar, pois é terra do meio, solo de entrechoques; mas atrás dessas paredes, no fim do bairro, o sol se põe. Se vocês seguirem Rio Siará, margem e mangue, verão quantos seres hão de aqui estar. Se seguirem ainda mais Rio Siará em direção ao Atlântico, a ponte aparecerá, ponte por onde já vi pular meus monstros, monstros frenéticos, que gargalham em queda. No fim de tarde, a natividade tem seus olhos encandeadas pelo pôr do sol. Aprendi que se fecharmos os olhos encandeados, veremos momentaneamente um caminho, um quase círculo laranja ao centro do plano escuro, uma centralidade de vida.

 

O século XXI nos deu a velocidade de tudo na cidade. E loucos e loucas agora são aqueles e aquelas que paradas estão, distraídas. A selvageria de sangue, como os séculos europeus nos mostrou, tornou-se outras selvagerias nos entrechoques da História Oficial. O homem branco colapsando os outros modos de vida em pragas. Fortaleza é uma cidade que espanta pelo seu comércio, com seu tráfico interno que enriqueceu a cidade como estrutura de finanças. Seus barões ingleses, a ponte dos ingleses, os monumentos para inglês ver... Fortaleza, fela da gaita... tu nos enlouquece, cidade norte, enlouquece, aquece, cidade norte, aquece. Tu nos enlouquece de morador, tu nos enlouquece de fazedor, tu nos enlouquece de maloca, tu nos enlouquece de avião passando, tu nos enlouquece de zoada dos culumins, tu nos enlouquece de senhorinhas passando com esses culumins de mãos dadas, tu nos enlouquece de policial fardado pa... pá! pá! pá! Tu nos enlouquece, Fortaleza, tu nos enlouquece dos automóveis, de todas as motocicletas, de todas as mobiletes invisíveis pela qual vetins e vetinhas pedalam no invisível; pedalam no invisível, os pivete doido e as piveta doida, pedalam no invisível, pedalam no invisível, pedalam no invisível... tu nos enlouquece! Tu nos aquece de Ogum armado, tu nos aquece de Ogum armado, tu nos aquece... perceber os Ogum armado, tu nos enlouquece, tu nos enlouquece, cidade norte! Os ferro, os concreto, os prego, a multidão de fazedor de moinho de matar, de comer, de criar... gente! De comer, de criar, de matar, de fazer gente. Tu nos enlouquece, Fortaleza, tu nos enlouquece. Tu nos aquece pela tua orla de toneladas de sal e pelo gosto do sal de maresia, tu nos aquece... tu nos enlouquece pela vida de cigania, tu nos enlouquece de pegaladrão, tu nos aquece de fio de condução, tu nos aquece de eletricidade, tu nos enlouquece, cidade norte, tu nos enlouquece de fio de condução, tu nos enlouquece de fio de poste, tu nos enlouquece se nós comêssemos mercúrio. Tu nos enlouquece pelo flúor armado, tu nos enlouquece pelos carros em multidão, tu nos enlouquece pelos gigantes de condução, tu nos aquece... pelas senhorinhas nas calçadas que fazem das calçadas, naves... tu nos enlouquece. De praças invisíveis, de praças construídas para ninguém brincar, para ninguém se deitar... Tu nos enlouquece, Fortaleza. Tu nos enlouquece pelas serras ao longe. Tu nos enlouquece pelas solitárias... Tu nos aquece de pardalzim, tu nos aquece de passarim, tu nos aquece, Fortaleza. Tu nos aquece de encruzilhadas.

 

O sol é o maior pixador da cidade. A memória-porão é acesso cotidiano. Nos negaram a entrada. A memória-casarão se fez oficial, construiu casas para barões. “Nois hoje escala e nos tornamo eternos na extremidade dos prédios”. No fim, percebemos que o Sol é o maior pixador da cidade, que deveria ser pra ele todos os paras, que foi o Sol que permitiu a vida, que foi Tupã que nos existiu, sim, que nos existiu. Não só o Sol, mas o Tempo... que nos coroou reis e rainhas, que preencheu nossa coroa na linha da mata e na linha de guardião. O Marco Zero não marcou ninguém! 418 anos de fracasso de fundação, 418 de afundamento. Nomeado como “Fortim de São Tiago da Nova Lisboa”, seu nome de batismo, uma História Oficial se sucede. Em Caos de Maresia, escrevo "(...) A história branca é uma história linear, cheia de datas e heróis. Abandonamos o tempo consecutivo, abandonamos o passado desterrador de mãos higienizadas que devoraram mapas inteiros, deixamos faminta a máquina colonial dos engenhos de moer gente." Nova Lisboa aqui? Nova Lisboa os povos do mangue? Nova Lisboa a Favela do Gafanhoto? A Homenagem de Galícia pela qual os povos europeus marcaram a fundação de Fortaleza fracassou no tempo. Na inauguração do cruzeiro que foi dado pelo governo espanhol em 2004, esqueceram de louvar aos povos desterrados que hoje observam tudo das malocas do Morro do Santiago. A fundação como uma barca afundou, o Marco Zero de Fortaleza, reinscrito em pixação, diz “1° Deus, 2° Nois, 3° Nois mata!!!”. Quando o dia 7 de setembro aniversaria, quantos morreram e quantos já mataram?

Os rastros de sangue fizeram da Coroa Portuguesa pedra de extermínio, para além de fundamentação. Fé cega, faca amolada. “Eles quebraram as costas erguendo Moloch aos céus!” A passagem acima é um verso do extenso poema "Uivo" (1956), de Allen Ginsberg. Sob as construções de concreto, a muralha do extermínio constrói olhos cegos e alimentam entidades que os homens europeus trouxeram em suas caravelas de escorbuto. Moloch (Grande Touro) é uma entidade assíria-amonita (fluência arábica, Oriente Médio) mas que denomina os tempos de sacrifício cujo os tiranos escolhem quem vai ser corpo-alvo (Pesquisar sobre o Homo sacer tutelado pelo direito romano arcaico) qual a cor da pele de um corpo a ser sacrificado, quem merece genocídio... A ele se sacrificava, em prol de futuro progresso, crianças, mulheres e estrangeiros ao calor de grandes fornalhas em tempos inférteis e secos. Aqui nos trópicos, Moloch assume a característica de demônio nas tradições judaica e cristã, assim como Leviatã (Grande Crocodilo) e Behemot (Grande Hipopótamo). O signo Moloch ajuda a explicar o fenômeno social do Estado de Exceção na qual vivemos, a engenharia social de controle patrimonial aguda no fogo das cidades. A valorização do concreto armado, das construções pesadas, da burocracia como conteúdo da forma dos templos de pedra em detrimento das formas de vida humana etiquetadas como cidadãos de segunda classe. Moloch é a grafia-mor que expressa o Direito Penal Máximo, é um juiz bem vestido batendo o martelo e condenando corpos e corpas escuras; ou as esquecendo no porão de alguma cela sem julgá-las: outra condenação é o esquecimento. Quem é inimigo do Estado brasileiro? Pátria anti-indígena e anti-negra. Pesquiso essa construção sob o Marco Zero de Fortaleza porque ela revela a sanguinolência da Colonização Portuguesa nesse trópico originário-nativo. A quem interessa uma "Homenaxe a Galícia" sendo que Galícia é uma região da Península Ibérica? (Reino Portugal-Espanha) Porque Fortim de São Tiago da Nova Lisboa? Um cruzeiro para uma primeira missa, um cruzeiro para a última missa, um cruzeiro dado pela coroa espanhola em 2004. Marco Zero de Fortaleza é Moloch. Nossa entidade é o Grande Passarim, Passarim preto e vermelho como o galo- campina, chamando outros passarins multicores na linha da mata. É na ave dele que voamos sob trincheiras. É na ave dele que rasuramos essas construções.

 

Existe alguma coisa entre o barulho do bater das ondas do mar e o choro inconsolável dos homens, das mulheres, das travestis. O tempo de feliz-cidade aqui nesse espanto de território talvez seja o tempo de um pôr do sol. Que ao mesmo tempo pode ser o tempo do choro, o tempo da chegada ou o tempo da partida. Quantas memórias nossos amores? Como se faz perguntas? É na ave dele que voamos sob trincheiras. A energia de nossos corpos esteve a acender as luzes noturnas de mercúrio de nossa cidade solar na alvorada dos dias. Se vocês seguirem Rio Siará, margem e mangue, verão quantos corpas cotidianas hão de aqui estar. No caminho daquela rua, o bar da esquina recebia as passadas ao som de “Diário de Um Detendo” dos Racionais MC’s. A Avenida Francisco Sá era sempre minha reta continua, mas nesse dia eu ziguezagueava sua linearidade. Um romance indigenista não ajuremado fracassou no tempo. O estereótipo não fuma cachimbo porque não sabe bebê-lo. A felicidade é igualzinha à nossa maloca arrumada. Aquela fotografia de tudo no lugar pode ser uma imagem feliz. Mas a bagunça virá de ovo. E a bagunça é sempre nova. Aprendemos mais arrumando nossa casa do que observando ela arrumada. Fortaleza, fela da gaita! Tu! Aquece? É preciso perceber meu bruto, minha zanga-zanga, cicatrizes ao passar por espinhentas veredas.

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Kulumim-Açu

Kulumim-Açu (Ronald Horácio Rodrigues da Silva, 1995) é indígena nativo da foz do mangue do Rio Siará, Fortaleza/CE. A partir das culturas brincante e nômade como a Arraia e a Pixação, transversaliza múltiplas linguagens artísticas, traduzindo imaginários muito ligados às heranças orais-visuais dos povos indígenas do Território Siarense. Conta histórias em literatura originária, utilizando-se da crônica, da prosa, da poesia, do conto e do exercício do ensaio em si. Alonga as formas de fazer colagens analógicas e digitais, animando-as com videoarte ou usando-as como repertório de pulso vital dentro da pintura em técnica mista. Formado pelo Curso Princípios Básicos de Teatro (CPBT 2017-2018), atua na pesquisa, dramaturgia e na preparação de elenco. Participou de curadorias coletivas como em “Territórios Somos Nós” (2019), organizada pelo Ateliê Casamata, “Mostra Perifeéricos” (2019), realizada no Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ), ambas acontecidas em território fortalezense. No final de 2019, esteve presente com a obra “Caos de maresia, estória de mangue” na exposição coletiva do Valongo Festival da Imagem – O melhor da viagem é a demora, curadoria de Diane Lima. No final de 2020, participa com três vídeos da série “MANGUESERTÃO – deslocamento entre a Bacia do Rio Siará e o Vale do Acaraú sobralense” de outra curadoria de Diane Lima: “The history that speaks: first notes” para a plataforma Hangar ONLINE – Centro de Intervenções Artísticas, sediada em Lisboa, Portugal. Atualmente, está como estudante na 5ª turma de Realização em Audiovisual da Vila das Artes, Fortaleza/CE (2019/2022).

Ilustração para plataforma práticas desviantes
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