top of page
Ilustração para plataforma Práticas Desviantes
Ilustração para plataforma Práticas Desviantes

Andar é tudos e mais. Ainda mais quando se olha para trás. Voltar e observar o que ficou e o que jaz. O bagaço da cana, a poça de lama, a cesta de banana. De que adianta recuar sem impulsionar, avançar sem considerar que caminho bom mesmo não serve apenas para passar, pois se o caminho é de levar alguém para algum lugar, esse caminho é de encaminhar. Porém se com as pedras do rio eu posso rolar porque haveria de parar como um paralelepípedo que só serve para a terra ocultar?

O Centro Cultural A Casa de DonArlinda propõe-se a ser um equipamento cultural que sirva a comunidade do município no qual faz parte, Camaragibe, e adjacências, e que essa partilha se dê por meios orgânicos e fluídos de ser, seja para deixar que as crianças peguem frutas, que os jovens peguem água da cacimba, ou que artistas LGBTQIAP+ e outras populações vulnerabilizadas e potentes aguçem os sentidos. A ideia é contribuir com o acesso à criação, difusão e formação em diversas linguagens artísticas e que as mesmas sejam, aqui, apenas um suporte para a manifestação de variadas energias transformadoras do indivíduo e do coletivo. Ao longo dessa jornada, desde sua idealização em meados de 2016, esse espaço vem sofrendo constantes afetações em uma teia de afetos que tem sido conectar a comunidade da Lagoinha à cartografia cultural do país e universal.

Acontece que os encontros e as movidas vão transcorrendo, sendo mais divagadas que divulgadas, e hoje fica até difícil para mim usar a língua portuguesa para falar disso. Contudo, mediante a diáspora epistemológica por nós sofrida, tentarei palavrear com essas palavras que temos. Sim, por muito tempo escrevi e escrevo, mas conforme vou vendo o mundo passar diante dos meus sentidos, perco os conectivos, a coesão fica pelo caminho. Os tempos estão difíceis e meu corpo já responde aos estímulos genocidas que emanam em todas as ruas mais empobrecidas do Brasil, uma falta de sensibilidade à morte que tem cor e endereço. A fim de me afastar de um jornalismo cada vez mais branco no preto que preto no branco, passei a experimentar também em 2016 contar para além das palavras. Primeiro porque o ofício de roteirista de animação me ensina a cada dia a aprender a criar imagens, sejam elas sonoras e/ou não, e segundo porque percebi que as palavras, sobretudo as de origem europeia, já não contemplavam os modos de vida que eu pretendia narrar. Mais uma vez me encontro deslocada.

 

Hoje me desdobro entre minhas atividades no audiovisual e artes visuais, e um excelente exemplo para falar disso sem sair do tema central desse ensaio, é a série animada infantil, Bia desenha. Para inspirar o quintal daquelas crianças, familiar e artístico, vem A Casa de DonArlinda para ilustrar a vivência de uma família bem diferente daquelas dos comerciais de margarina, no subúrbio da cidade. Penso que já passou do tempo de haver o máximo possível de representatividade das crianças do povo na TV, e com isso pitadas de tijolo aparente, ladeiras sem asfalto, problemas estruturais de serviços públicos dão o tom vez ou outra na trama. Para tal a representação se faz imprescindível também nos lugares de decisão sobre a série, a exemplo dos cargos de roteiro e direção. 

Para mim o que há de mais poético nessa história é a singeleza de Bia, uma menina de calcinha que se aventura com seu primo, no ambiente familiar que é o quintal, em várias técnicas e suportes das artes visuais, sendo o desenho o carro-chefe. Era como se aprendesse com cada uma dessas personagens, ou revisitasse, assim, a minha infância no quintal da Casa de DonArlinda. O episódio piloto, por exemplo, traz marcado o chão cor de rosa com as pétalas da flor de jambo, e faz uma provocação em frente a uma imagem importada po Hollywood, em que legais eram os anjos na neve e o natal em Nova Iorque. Na contramão dos desenhos animados que assistia em grande parte da minha formação audiovisual na infância, por meio da televisão, agora em 2019 criava a imagem de um anjo de jambo marcado no chão por um menino racializado de pele marrom e cabelo escorrido, que adora a cor rosa – Raul – que estreava em uma empresa pública de comunicação, a TV Brasil, em um tempo que a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Romão, e a mídia distraia todo o povo com a conversa de que “menina veste rosa e menino veste azul”. 

Neste sentido, vem a série de performances #tecnologiaaservicodaorgia, em que pese minha atuação enquanto comunicadora, uma vez que atuo no jornalismo cultural há cerca de dez anos sendo meus principais interesses as culturas populares olhadas no viés de diferentes linguagens artísticas, mas sobretudo a música e o audiovisual. A quarta parte da série, Certidão de Aborto, contempla recortes de livros de A Casa de DonArlinda, como O Conselheiro Prático da Mãe Moderna e Amor e Felicidade no Casamento, e alia-se a uma reportagem publicada em 2013 no Jornal do Commercio, sobre violência obstétrica. Ora, o aborto já é institucionalizado pelo estado a partir de uma precária saúde pública. Triste que são mulheres invisibilizadas aquelas que lotam as maternidades públicas, embora sejamos maioria da população, e são poucas as vezes que nossos discursos vem à tona.

A manutenção da memória foi algo que motivou desde o início a empreitada de A Casa de DonArlinda. De um lado, porque eu estava aprendendo a lidar com a memória de vovó, que repete grandes causos em mantra, e assimilando o tanto de conhecimento sobre raça, gênero e classe que aprendi nos últimos anos, de forma autodidata e flertando apenas brevemente com a academia. De forma autodidata pois desde pequena eu já convivia com essa mulher inspiradora e fortalecedora que é Linda, apelido carinhoso para Arlinda, e que tem um recorte bem meu de sua história registrada no filme Madeira de Lei, roteirizado e dirigido por mim no final de 2020 e incentivado pelo edital Cultura em Rede do Sesc Pernambuco. Desde sempre, vovó e sua casa me inspiram a ampliar meus horizontes de ser, uma vez que ela mesmo só fez o primário (ensino fundamental 1) e foi com o trabalho, ancestralidade, oralidade e muita leitura que lhes oportunizaram os saberes. 

A primeira iniciativa a contar com A Casa de DonArlinda em 2020 foi o Porto Musical, um evento voltado a profissinais da música que nos procurou para fazer a articulação local de agentes da música de Camaragibe e entorno E foi assim que na Biblioteca Pública Penarol nos reunimos com Melina Hickson, idealizadora do projeto, e nomes como Lia de Camaragibe, Ligeirinho dos Dendê, Albino Baru, Afroito, entre outros, tiveram suas carreiras aceleradas com a troca de saberes que posteriormente resultou no acesso desses artistas, grupos e produtores a série de formações no Cais do Sertão porventura do Porto. A TapiOK, outra parceira da casa, um empreendimento de Sulamita Santos, também marcou presença na lanchonete do evento. Pegando o embalo, passa-se o Porto Musical, que acontece na semana pré-carnavalesca, e recebemos a proposta da artista visual Camila Valones para a realização da oficina Vingança de Carnaval por aqui. Foi uma experiência em que jovens moradores da comunidade da Lagoinha puderam ter uma vivência em confecção de adereços carnavalescos utilizando-se de materiais orgânicos e também recicláveis que foram recolhidos nas ruas do local. Um fato curioso foi a participação da vizinha e jovem artista visual Willyane Gleice que, além de confeccionar um belo chapéu, que lembra em cores e brilho o Mateus de Cavalo Marinho e o Caboclo de Lança do Maracatu Rural, ambas manifestações da zona da mata pernambucana, produziu junto à oficineira uma placa a ser utilizada na venda de água durante o carnaval camaragibense. E assim foi.

Há tempos desejei também retornar para a comunidade a exibição dos episódios de Bia Desenha para as crianças, e dessa maneira foram realizadas duas sessões do Cineclube Quintal O Impossível, com o apoio do Movimenta Cineclubes, uma iniciativa de alguns coletivos de cinema e política em Pernambuco (entre eles o Movimenta Lab, o coletivo Negritude do Audiovisual Pernambuco), e de amigas e parceiras como Rose Lima e Elisa Lazuli. Projetor, tela, notebook, pipoca e água, junto a uns intervalos com gameplay e bregafunk, fizeram a cabeça da galerinha. Foi um encontro muito fortalecedor, entre crianças e outras pessoas de diferentes idades em torno das animações. Além de Bia, exibimos Nana e Nilo, roteirizada por Renato Nogueira e dirigida por Sandro Lopes, morto neste ano em decorrência da COVID19 que no Brasil se intensifica com um governo federal comprovadamente negligente com a vida. Sandro foi co-fundador e articulador do Nyama Animação Negra no Continente Africano e Diáspora, e uma importante força em prol de uma sociedade antirracista. 

Tão logo chegou a pandemia e nos vimos em face à precarização do SUS, do ministério da Saúde, sucedendo a extinção do Ministério da Cultura - MinC, e o sucateamento das políticas ambientais, para citar algumas das tragédias impostas como projeto político imperialista desde o golpe de 1500 e, mais recentemente, em 2016 com o impeachment, projeto esse acelerado pelo presidente Jair Bolsonaro desde o fatídico resultado das urnas em 2018. Mediante a paralisação das atividades culturais presenciais, fechando assim museus, cinemas, casas de shows e outros equipamentos em virtude da pandemia, a classe artística se organizou em levantes e fóruns para discutir a Lei 14017 de Emergência Cultural. E aqui estive, diretamente da Casa de DonArlinda, participando ativamente das discussões a nível municipal e estadual quanto à implementação da Lei Aldir Blanc, nome homônimo ao compositor também vítima da Covid19 e do descaso com a cultura. 

 

Tenho um interesse muito afinado em relação a gestão cultural, e para a política não seria diferente, afinal foi escrevendo sobre o Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura – Funcultura, para o caderno de cultura dos jornais locais, que também tive acesso a esses conhecimentos, direitos básicos para o exercício da cidadania. Dessa forma, o Centro Cultural A Casa de DonArlinda desde muito cedo se propôs a oportunizar o acesso de artistas advindos das camadas mais populares a editais de cultura, viabilizando assim suas inscrições em editais e promovendo, ainda, formações voltadas a projetos culturais, entre elas a live SOS Microprojeto Cultural, uma iniciativa articulada junto a Aqualtune Produções e a produtora cultural Bárbara Collier, que por sinal tem vínculos familiares com Camaragibe, mas aí é assunto para outro ensaio. Entre os alunos da oficina realizada por Bárbara, apoiada por nós, que tiveram seus projetos aprovados, os artistas visuais e pesquisadores indígenas Ziel Karapotó e Abiniel Nascimento.

 

Mais recentemente ocorreu também o mutirão de grafite que nasceu da parceria entre a Casa Balea (Max Motta, Amanda Lira e Raoni Assis) e a nossa A Casa de DonArlinda (Bis0ro, Matheus Darvim e eu) e também a Assessoria Jurídica Popular, além do filme A Noite da Metamorfose, incentivado com recursos da Lei Aldir Blanc Pernambuco. O curioso deste último projeto é que se trata de um documentário experimental sobre uma importante figura camaragibense, Josenita Duda (Nita ou Jô de Camaragibe), que desde os anos 1970 junto à equipe popular de Camaragibe criou a homônima festa, de cunho político e artístico pela educação e saúde sexual precursor de movimentos de trabalhadores, feministas e LGBTQIAP+.

 

Mais uma vez a arquivística e a documentação de acervo em A Casa de DonArlinda vem a reforçar a arquivologia das memórias e a arqueologia do território. Histórias, cantos, catalogação de fotos, de objetos vistos em mapeamento/ perspectiva nos mostram percursos como o de Nita, falecida aos 63 no bairro vizinho do Alberto Maia. Sem dúvidas que, assim como vovó Arlinda e eu, mulheres marginalizadas, racializadas, independentes, à frente do nosso tempo e senhoras da própria (a)sexualidade. 

 

A Noite da Metamorfose representa o encontro entre a memória consolidada e a memória em construção, em que pesem os recursos de documentário e ficcionalização para apresentar perspectivas do que se passou e também o legado daquelas performances provocativas e também conectadas à informações sobre saúde sexual com vistas à prevenção à IST’s. Dessa maneira, além de construir um roteiro que contemple as informações pesquisadas e apuradas sobre a vida de Jô de Camaragibe e A Noite da Metamorfose, pude ainda realizar uma curadoria de performances para compor a festa, transmitida em live e posteriormente editada e lançada como curta-metragem. O ponto alto da festa é a bebida Xoxota, realizada durante os festejos que remontam a festa anual realizada por Josenita (em memória), a chefe da brigada Maria da Penha em Camaragibe, Carmem Clemente, o professor Chiquinho, o estilista Eduardo Ferreira e todos aqueles e aquelas então pré-adolescentes que encontravam as portas abertas em matinês, e muitos que se escondiam para acompanhar as performances e sonhar/ acreditar/ lutar por outras possibilidades de ser sem violências.

Meu trabalho enquanto jornalista na área de cultura, crítica, me aproximou das linguagens artísticas como até então não acontecera devido ao parco acesso que uma menina pobre, estudante de escola pública, tivera. Minha mãe me ensinou desde cedo que as minhas conquistas teriam de ser minhas mesmo, ou seja, teria eu que conquistá-las sem “empurrõezinhos”, uma vez que ela, dona de casa, não tinha “conhecimento” (no sentido de network, Q.I., o popular “quem indica”). No fundo sei que mainha sabe que os demais conhecimentos que ela me legou, sendo o amor o mais forte deles, me conduz até aqui com muita alegria na minha trajetória profissional, apesar dos constantes ataques sofridos mediante a um sistema ainda extremamente patriarcal, eurocêntrico, imperialista, colonizado, misógino, classista, oligopólico, LGBTQIAP+fóbico e mais um monte de palavras que o pessoal aqui da comunidade pode não ter incluído no seu vocabulário, mas que sentem na pele. 

 

Neste sentido o mote do Práticas vem a refutar a soberania de palavras dispostas unicamente em papéis, muitas delas introduzidas violentamente e a custa de muitos epistemicídios e silenciamentos, agora lanço mão delas para vomitar aquela sopa de letrinhas com glutamato monossódico de volta. A reza é bonita porque se diz tão baixo que parece o vento, e se mistura com tudo está a nossa volta, as palavras faladas pelo menos trazem consigo respiro e vento, e os erros de português nada mais são do que o estupro de terras e corpas, perpetuado não apenas por lusitanos mas também por holandeses, alemãos, judeus e italianos pelo lado de cá até hoje como se nada.

Kalor

Kalor (Camaragibe, 1990), mãe, suburbana, preta e brincante, artista do audiovisual, da performance, da música. Crítica cultural e curadora de cinema (Mostra Absurda e Festival Internacional de Animação da Bahia). Diretora. Jornalista e roteirista. Em 2017 foi presidente do conselho de cultura da sua cidade, Camaragibe, e diretora de Igualdade Racial no mesmo município. Dedica-se à democratização da cultura e é gestora e co-fundadora do Centro Cultural A Casa de DonArlinda, idealizado em 2016 e que desde 2020 tem articulado atividades educativas e políticas na comunidade da Lagoinha. Jornalista por formação, Kalor atua no campo da crítica cultural desde 2012, tendo sido publicada nos veículos Jornal do Commercio, blog Afoitas, revista Outros Críticos e site Quarta Parede. Como realizadora audiovisual, assina a série experimental #tecnologiaaservicodaorgia e o curta Madeira de Lei. Lançará neste ano dois novos curtas, entre eles A Noite da Metamorfose, e uma série educativa em animação em parceria com o Curso livre de arqueologia da UFAM. É uma das roteiristas e criadoras de Bia Desenha, animação infantil que circula nacionalmente desde 2019.

bottom of page