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Ilustração
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Acordei de um salto. Levantei subitamente e senti os meus pés tocando no chão suado, gelado, como que estivesse adivinhando chuva. Tateei sobre o tamborete que fica ao lado da cama procurando o fósforo e a vela que estava pregada sobre um pirex. Ontem faltou energia elétrica por aqui. Acendi a vela e fui até a cozinha. O vento se entranhava entre o ferrolho da janela e o buraco na parede, criando uma marcha arranhada e inebriante. Dois passos seguidos e eu estava de frente à moringa, precisava tomar água porque a garganta já não se aguentava de tanta secura e meus lábios estavam cortados, como se a febre tivesse me acompanhado naquela noite. Foi quando toquei a água na boca do velho copo de alumínio que lembrei do sonho:

Era como se fosse madrugada, mais ou menos claro, mais ou menos escuro. Estava no terreiro de casa, aqui, e lá na frente tinha uma praia. Ao mesmo tempo que era longe, era perto e num piscar de olhos a gélida areia acinzentada abraçava meus pés. Meu corpo pisava fundo naquele território desconhecido, enquanto uma névoa emaranhava a vista de quem já estava cambaleando. Apertei meus olhos, esfreguei e enxerguei como se fosse uma visagem: três grandes pedras se erguiam na praia, diante de mim. Nesse momento já  estava tomada até a cintura pela água do mar. A lua cheia ardia meus olhos refletindo o brilho nas ondas fluorescentes. Bem, não sabia se era a lua ou o sal da água. Porém, meus olhos lacrimejavam desesperadamente enquanto eu chegava cada vez mais próxima às pedras, sendo levada pela memória de meus músculos que sabiam o caminho a seguir. Não sei explicar muito bem, mas derrepente eu estava sobre uma pedra emergida sob os meus pés, noutra hora eu estava embaixo da pedra - sentia a areia tocando minhas costas, enquanto a pedra repousava sobre minha barriga naquela escuridão condensada de fundo do mar - e às vezes eu era a própria pedra sendo moldada pelo vento e pelas ondas. Até que ouvia um sussurro e retornava para o caminho que estava. O sussurro se aproximava e se dissipava à medida que eu procurava entendê-lo. Até que me vi novamente em um ponto em comum entre as três grandes pedras e elas me diziam coisas traduzidas em estrondos no grau mais celular de meu corpo. Eu soluçava.

E era a pedra; estava sobre a pedra e estava debaixo da pedra. 

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Estrondo materializa o primeiro ciclo da Plataforma Práticas Desviantes. O ciclo se constitui conceitualmente a partir das elucubrações entre Ariana Nuala e eu, Abiniel João Nascimento. Especulações estendidas e marejadas sob os sóis e as luas de territórios encantados, indisciplinares ao espaço-tempo colonial e que regurgitam segredos envultados em rochas e rochedos. Buscamos, a partir de então, ininhar nossas narrativas, mirando na criação de um lugar de encontros, através de uma chamada pública pela qual selecionamos três ensaios, assim como por meio de convites direcionados a três criadorus.

Nesse lugar, a série de fotografias de Pepyaká Krikati (MA) se encontra com o Projeto Imburana de Edson Barrus Atikum (PE), na costura de um pensamento sobre as vidas não-humanas e encantadas que se revelam e constituem nossas tecnologias de manter viva a memória. Ambos se aglutinam aos registros de Priscilla Melo (PE), moldados como cartões postais de um  pluriverso onde as histórias de Kulumyn-Açú (CE) transbordam com cheiro, textura e lembranças dum corpo coletivo. Escavando o asfalto, Loren Minzú (RJ) aponta para memórias soterradas nesse grande rio de pixe endurecido; enquanto Kalor Pacheco (PE) constrói uma arqueologia afetiva, territorial e de si, sitiada na casa de sua avó.

E a partir desses mundos, desses sonhos, compartilhamos aquilo perdurado sob e para além do epitelial; sob e para além da forma que somos ou seremos; sob e para além de nossos tempos. 

 

Abiniel João Nascimento

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